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OPINIÃO

Indisponibilidade do crédito tributário: dogmática fiscal e realidade da istração pública

A concepção tradicional de que o crédito tributário é indisponível à Fazenda Pública está entre os pilares mais frequentemente repetidos na dogmática do Direito Tributário brasileiro. Fundamentada no princípio da legalidade e na supremacia do interesse público, essa noção tem servido para legitimar práticas arrecadatórias rígidas e, muitas vezes, descoladas de uma análise de eficiência, economicidade e razoabilidade. Contudo, ao se observar o tratamento conferido pelo ordenamento jurídico brasileiro a institutos como a transação tributária, a dação em pagamento, a anistia fiscal e a remissão, percebe-se que a ideia de indisponibilidade absoluta não resiste à análise sistemática.

O argumento central da indisponibilidade repousa sobre o art. 3º do Código Tributário Nacional, segundo o qual “tributo é toda prestação pecuniária compulsória instituída em lei e cobrada mediante atividade istrativa plenamente vinculada”. A leitura tradicional entende que, uma vez constituído o crédito tributário, não haveria margem para que a Fazenda Pública dele dispusesse, sob pena de renúncia de receita e violação ao princípio da legalidade orçamentária (art. 167, II, CF/88). Tal entendimento, contudo, ignora que o próprio CTN, ao disciplinar os institutos da anistia (art. 180), da remissão (art. 172), da transação (art. 171) e da dação em pagamento (art. 156, XI), autoriza expressamente formas de extinção ou abrandamento do crédito tributário com base em critérios de oportunidade e conveniência istrativa, desde que sob a égide da legalidade.

Com o advento da Lei nº 13.988/2020, que regulamentou a transação tributária no âmbito da União, fica evidente que o Estado brasileiro ou a reconhecer, de forma expressa, a possibilidade de negociação de créditos tributários inscritos ou não em dívida ativa, mediante critérios de interesse público e capacidade contributiva. A transação representa o rompimento institucional do dogma da indisponibilidade, com amparo inclusive em decisões recentes do Supremo Tribunal Federal, a exemplo da ADI 2446, em que se reconheceu a constitucionalidade da transação extrajudicial e judicial de créditos inscritos, desde que dentro dos limites fixados por lei. O novo art. 171 do CTN, com a redação dada pela referida lei, inaugura um novo paradigma: o crédito tributário a a ser ível de composição, sem que isso configure renúncia fiscal inconstitucional.

O Estado contemporâneo, alicerçado em princípios como eficiência (art. 37, caput, CF/88), economicidade e equidade, não pode mais sustentar uma postura meramente arrecadatória e punitiva. A absolutização da cobrança, mesmo quando economicamente inviável, compromete a função fiscal e extrafiscal da tributação.

A atuação inteligente da istração fiscal exige que se leve em conta o custo da cobrança, a probabilidade de êxito, o impacto econômico-social da medida, e a função social da empresa devedora. Nesse contexto, a ideia de que o crédito tributário seria indisponível por essência não apenas ignora a realidade do contencioso fiscal brasileiro, mas afronta o dever constitucional de boa istração.

A jurisprudência pátria vem, progressivamente, reconhecendo a possibilidade de desistência da execução fiscal, extinção de créditos de baixa recuperabilidade, e a viabilidade de acordos extrajudiciais mesmo sem previsão expressa em todos os entes federados. À guisa de exemplo, tem-se a manifestação do STJ em matéria correlata: “A Fazenda Pública pode, com base em critérios objetivos e de interesse público, deixar de ajuizar execuções fiscais de baixo valor, bem como desistir de ações em curso, conforme orientação firmada pelo Supremo Tribunal Federal e incorporada no art. 20 da Lei nº 13.988/2020” (STJ, REsp 1.366.721/SP, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, DJe 12/03/2021). Além disso, o STF já afirmou que a indisponibilidade não pode ser interpretada como um impeditivo absoluto à renúncia fiscal, desde que respeitada a legalidade e a transparência da escolha istrativa (ADI 6357, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 08/06/2022).

Ao contrário do que prega a leitura tradicional, o crédito tributário não possui natureza jurídica absoluta ou imutável, mas integra o conjunto de relações obrigacionais públicas sujeitas à valoração política e discricionariedade técnica. A dogmatização da sua indisponibilidade constitui instrumento de reprodução de um modelo de gestão fiscal anacrônico, avesso à racionalização e à justiça distributiva.
Nesse contexto, a indisponibilidade do crédito tributário, tal como defendida por parte da doutrina, configura-se como um mito jurídico que não encontra e na legislação infraconstitucional nem na jurisprudência mais recente. O modelo contemporâneo de istração tributária exige uma abordagem mais complexa, na qual a legalidade se harmonize com a eficiência, a justiça fiscal e a realidade econômica da cobrança.

Negar a possibilidade de flexibilização da cobrança tributária significa legitimar um sistema ineficiente e contraditório com os objetivos da República. Em lugar de dogmas, o Estado precisa de estratégias. Em lugar da absolutização do interesse arrecadatório, é necessário o reconhecimento de que o verdadeiro interesse público não é a cobrança a qualquer custo, mas a justiça na tributação.

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*Professor e Advogado. Mestrando do PPGDI-UNICAP
**Doutor em Direito. Professor da UNICAP, graduação e mestrado profissional em Direito e Inovação (PPGDI-UNICAP)

 

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