Crise na cardiologia pública ameaça formação médica e vidas no Vale do São Francisco
A cardiologia pública no Vale do São Francisco vive uma de suas piores crises já registradas. Mais do que uma falência na assistência à saúde da população, a situação atual ameaça diretamente um dos polos formadores mais relevantes do interior do Nordeste: a residência médica em cardiologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf).
Criado há mais de uma década, o programa forma especialistas altamente capacitados, com impactos positivos diretos na rede de saúde da região e em outras áreas carentes do país. Agora, essa estrutura está à beira da interrupção. O motivo? A ausência de cenários adequados de prática clínica e a subutilização de estruturas fundamentais no Hospital Universitário da Univasf (HU-Univasf), gerido pela Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh).
Mesmo com equipamentos instalados, equipe técnica qualificada e salas de hemodinâmica prontas para uso, os residentes não têm o regular a procedimentos como cateterismo e implante de marcao - essenciais na formação e no cuidado de pacientes com doenças cardiovasculares. O ime compromete a qualidade da formação médica e acende o alerta para o risco de desmonte de um centro de ensino único na região.
Para Dr. Anderson da Costa Armstrong, vice-supervisor da Residência de Cardiologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco- UNIVASF e primeiro presidente do interior do estado na regional pernambucana da Sociedade Brasileira de Cardiologia, a crise atual pode comprometer a formação em Cardiologia no interior do Nordeste mas também afeta diretamente as pessoas que buscam os serviços de saúde de alta complexidade na região. Segundo ele, a situação é alarmante e sem precedentes: “Cheguei ao Vale do São Francisco em 2008, quando fazíamos atendimentos em cardiologia de ponta pelo SUS, incluindo cateterismo cardíaco de urgência, implante de marca-o e cirurgias cardíacas complexas. A situação vem se deteriorando desde então e hoje vivemos a pior situação assistencial em doenças cardiovasculares que vi, correndo inclusive o risco de perder a única residência de cardiologia do interior do Nordeste, com mais de 10 anos de formação de especialistas de alta qualidade. A população que depende do SUS está sofrendo como nunca. Precisamos de parcerias em todas as esferas de gestão para reverter essa situação com a urgência que as pessoas merecem”, afirmou Armstrong.
Sem assistência nem formação
Enquanto a estrutura de saúde especializada deixa de funcionar, pacientes com infarto agudo do miocárdio - uma das principais causas de morte no país - enfrentam longas viagens em busca de atendimento. Em vez de receberem o cuidado necessário em Petrolina ou Juazeiro, são encaminhados a cidades de menor porte mas com estrutura de atenção à saúde cardiovascular em funcionamento, como Irecê, Serra Talhada ou Caruaru, muitas vezes em situação crítica.
“Tempo é músculo e músculo é vida”, diz um aforisma frequentemente repetido pelos cardiologistas, segundo o Dr. Armstrong. Quanto antes um paciente com infarto é submetido a um cateterismo e a uma angioplastia, explicou o cardiologista, maiores são suas chances de recuperação e menores tendem a ser as sequelas. No entanto, essa rede de urgência cardiológica praticamente desapareceu no SUS da região. O fechamento da emergência do Hospital Promatre agravou o problema, deixando o Vale sem um pronto-socorro cardiológico público de referência.
A situação se agrava com a redução drástica de cirurgias cardíacas pelo SUS e a ausência de contratualizações efetivas com hospitais privados. Enquanto isso, a tecnologia permanece ociosa. Apenas no HU-Univasf, há uma sala de hemodinâmica montada há mais de dois anos que nunca foi utilizada para pacientes do SUS. O mesmo se repete no Hospital Regional de Juazeiro.
Investimento parado, vidas em risco
Milhões de reais em equipamentos estão parados, enquanto pacientes morrem ou desenvolvem complicações evitáveis. Trata-se de uma crise de gestão, e não de recursos tecnológicos ou humanos.
A comparação com outras regiões do Nordeste é inevitável. Como dito, cidades menores em Pernambuco, como Serra Talhada e Caruaru, já estruturaram serviços públicos de cardiologia de alta complexidade. Em Limoeiro do Norte (CE), o Hospital Regional Vale do Jaguaribe anunciou a realização de quase 3 mil procedimentos hemodinâmicos em dois anos. No Vale do São Francisco, nenhuma intervenção desse tipo é feita pela rede de hospitais públicos, restando um atendimento precário e insuficiente nos serviços privados e filantrópicos credenciados de forma suplementar ao SUS.
Um apelo por soluções
Longe de uma caça às bruxas aos gestores, o momento exige soluções urgentes. Representantes da Univasf, prefeituras, consórcios intermunicipais, além dos governos estaduais de Pernambuco e Bahia e o próprio Governo Federal, precisam assumir protagonismo na reestruturação da assistência cardiológica na região.
A responsabilidade é tripartite, com resposabilidade de municípios, estados e governo federal, como prevê o SUS. Novamente recorrendo às palavras do cardiologista Anderson Armstrong: “não devemos apenas buscar culpados, é preciso que os entes federados atuem de forma articulada para garantir não apenas o funcionamento das estruturas já existentes, mas também a continuidade da formação médica especializada que tem sido referência no interior do país”.
O cenário atual representa um retrocesso histórico para a cardiologia pública no Vale do São Francisco. Enquanto a rede privada opera com tecnologia de ponta, os pacientes do SUS enfrentam uma realidade digna dos anos 1970. O mais grave é que a infraestrutura está disponível - mas falta gestão, integração e compromisso político para colocá-la em funcionamento.
O custo dessa omissão não se mede apenas em números: ele se traduz em vidas perdidas e no desmonte de uma política pública de formação médica e assistência hospitalar construída com esforço e investimento coletivo.