Pela Netflix, documentário revisita a tragédia de Congonhas e o descaso que matou 199 pessoas
Produção da Netflix em três episódios vai além da tragédia e expõe o histórico de decisões equivocadas
Não é apenas sobre o que aconteceu em 17 de julho de 2007. O documentário “Congonhas: Tragédia Anunciada”, dirigido por Angelo Defanti, é sobre tudo que veio antes. A série em três partes da Netflix, lançada recentemente, revive o maior acidente aéreo da história do Brasil com a sensibilidade de quem entende que, por trás dos números, havia vidas. E por trás das vidas, havia escolhas. Muitas delas erradas.
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O voo JJ3054, da TAM, partiu de Porto Alegre rumo a São Paulo com 187 pessoas a bordo. Não parou. Em uma pista molhada, sem ranhuras que auxiliassem a frenagem, o Airbus ultraou os limites da pista de Congonhas e colidiu com um prédio da própria companhia. O impacto, seguido de uma explosão alimentada por um tanque cheio até a boca, matou 199 pessoas.
O documentário parte do factual, mas não estaciona nele. Usa imagens de arquivo, entrevistas com familiares das vítimas, sobreviventes, profissionais do resgate e especialistas em aviação para construir algo mais amplo: uma crítica a um sistema aéreo que estava em colapso. O chamado “apagão aéreo” dos anos 2000 não foi pano de fundo e, sim, parte do desastre. A Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), já na época fragilizada e pressionada, não resistiu ao peso das decisões que deveriam ter sido tomadas e não foram.
O título da obra não é força de expressão. “Tragédia anunciada” é quase um eufemismo. As decisões que levaram ao acidente estavam registradas em boletins técnicos, relatórios de segurança, alertas de pilotos e protestos de controladores de voo. A ausência de ranhuras na pista, a curta extensão do aeroporto, o adensamento urbano ao redor, o excesso de voos, a logística de abastecimento... tudo isso era conhecido.
A produção também trata a aviação como reflexo do país. Fala sobre decisões políticas, interesses econômicos, silenciamentos estratégicos e sobre como a tragédia não foi só um acidente, mas um sintoma de uma doença mais profunda, a conivência institucional com o risco, desde que ele seja rentável.
Angelo Defanti não dramatiza o que já é inável por si só. Em vez disso, entrega uma narrativa que respeita a dor sem perder a firmeza. Há espaço para indignação, mas também para análise técnica. A indignação, aliás, nasce da clareza. Não faltavam dados. Faltou responsabilidade.
“Congonhas: Tragédia Anunciada” é, em muitos sentidos, um ato de memória. Em um país acostumado a empilhar tragédias e esquecer nomes, o documentário se recusa ao esquecimento. Relembra, denuncia e provoca. E faz o que a pista 35L não conseguiu: obriga a parar.
*Fernando Martins é jornalista e grande entusiasta de produções televisivas. Criador do Uma Série de Coisas, escreve semanalmente neste espaço. Instagram: @umaseriedecoisas.
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